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Décio Galina

Vamos depender da Alicia Keys ou um dia você vai conhecer a Amazônia?

Décio Galina

19/09/2017 11h07

Décio e Nico tomando vento na cara durante passeio de voadeira no rio Negro

Então a Alicia Keys abre espaço à líder indígena Sônia Guajajara, no meio do show do Rock in Rio, para a nativa implorar aos políticos que barrem mais um estupro coletivo do que resta de mata virgem amazônica. Aí você se emociona ao vivo, chora no sofá. Mas, repare, em breve vai esquecer "a causa". Por quê? Porque logo a Amazônia deixa de ser pauta, sai do seu radar e praticamente ninguém da turma tem muita história para contar dessa metade abandonada do país. A maioria esmagadora do Brasil – e a classe social dominante que tem condição de viajar para os quatro cantos do planeta – não tem o hábito de passar as férias na floresta, mal conhece os destinos possíveis de serem visitados com toda a família e, confesse, não tem viagem nenhuma marcada para lá. Muito menos para levar os seus filhos – afinal, deve estar mais caro ir para Manaus do que para Miami.

A Ilha do Amor, que fica na vila de Alter do Chão, no Pará

OK, você vai lembrar agora de uns amigos que passaram um fim de ano mágico em Alter do Chão, Réveillon passado – e está considerando seriamente ir esse ano, já que vai rolar um som ótimo pertinho do Tapajós. Mas o que mais? Quantos colegas conhece que investiram uma temporada com a molecada nos dois excelentes hotéis de selva que existem em Novo Airão (195 km ao noroeste de Manaus), no rio Negro, para conhecer o impressionante arquipélago fluvial de Anavilhanas? E fazer a clássica travessia de cinco dias pelo rio Amazonas, de Manaus a Belém, dormindo em redes (se não gosta de rede, beleza, tem cabine com ar-condicionado no mesmo barco) para fazer contato com a população local e o jeito que se toca a vida às margens de um rio que parece mar? Já se perdeu em uma manada de búfalo na Ilha do Marajó? Ficou animado com a notícia que saiu na Ilustríssima, semana retrasada, dizendo (sem nenhuma foto…) que em breve vão reabrir a trilha para o Pico da Neblina, ponto culminante do Brasil? A trilha parte de São Gabriel da Cachoeira, numa região do Amazonas conhecida como "cabeça do cachorro" – dá uma olhada no mapa para ver como é o desenho do bicho certinho.

Décio Galina segurando a corda que costura a procissão do Círio de Nazaré, em 2006 (foto de Araquém Alcântara)

Tente listar agora quem está se preparando para o próximo Círio de Nazaré, sempre no segundo domingo de outubro (esse ano cai dia 8), que acontece desde 1793 e atualmente reúne mais de duas milhões de pessoas em Belém, na maior festa católica do planeta – precedida de uma das maiores baladas gays que se tem notícia nesse país (mas nunca entra na reportagem de praxe que a TV Globo faz do Círio), as Filhas da Chiquita. Já ouviu falar? Claro que esse desconhecimento de temas óbvios do norte brasileiro também está ligado ao absoluto desdém editorial que se dá ao tema. O guia Quatro Rodas, por exemplo, o mais influente do país, feito pela editora Abril até 2015, publicou naquele ano uma "Edição Especial 50 anos" – entre seus capítulos iniciais, há o "Roteiros de Viagem". Sabe quantos dos 19 percursos sugeridos no país são na Amazônia? Nenhum. Pegue como exemplo outra fonte tradicional de publicação especializada, a revista Viagem e Turismo, da mesma editora. Sabe quantas capas a Amazônia rendeu esse ano? Nenhuma. Sabe quantas chamadas (entre as quatro ou cinco que saem na capa em toda edição) eram da Amazônia até agora, em 2017? Uma.

Fim de tarde em Fura Grande, próximo a Manaus, capital do Amazonas (foto Eduardo Vessoni/UOL)

A mudança desse lamentável cenário passa também por uma alteração na forma como as escolas do Sudeste enquadram a selva em seus currículos. Deveriam ser rotineiras excursões escolares para Manaus, Belém, Rio Branco, Boa Vista – que tal formatura do ensino médio em um trekking para o Monte Roraima? Ou a nossa molecada é instruída a mudar radicalmente a forma como o Brasil abraça a Amazônia – e passa a frequentar e discutir a região, ou vamos continuar sujeitos a desmandos de um presidente meia-tigela, que tem a cara de pau de, da noite para o dia, publicar no Diário Oficial da União que vai transformar 47 mil quilômetros quadrados de verde em garimpo. Sabemos que ele não possui muita vergonha na cara, mas só faz isso porque tem certeza que o país está pouco se lixando com a floresta. Se a coisa continuar assim, pessoal, nem a Alicia Keys vai ter como ajudar.

Sobre o autor

Paulistano de 1973, Décio Galina fez jornalismo na Cásper Líbero no início dos anos 1990 – os computadores chegavam à faculdade na época em que ele suava para passar nos testes do curso de datilografia do Senac. Trabalhou com Caco Barcellos na pesquisa do livro “Rota 66”. Passou alguns meses na “Gazeta Esportiva” antes de ficar cinco anos de fortes emoções na editoria Geral do jornal “Notícias Populares” – foi de repórter policial a editor. Deixou a vida do crime na periferia e começou a editar a revista “Daslu”, na Trip Editora. Ficou na Trip de 2001 a 2017: 16 anos produzindo conteúdo para marcas como Itaú Personnalité, Mitsubishi, Pão de Açúcar, Natura, Gol Linhas Aéreas, entre outros. Já viajou bastante, dentro e fora do país, o suficiente para saber que o Brasil é seu lugar predileto.

Sobre o Blog

Como curtir a vida com dois filhos moleques (2 e 10 anos), viagens dentro e fora do Brasil e os caminhos de Bilhete Único em São Paulo -- já que o autor sabe dirigir revista, mas não dirige carros...

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