Topo

Histórico

Categorias

Décio Galina

Roda de capoeira de 54 crianças tem só três negros e cenas de bullying

Décio Galina

15/12/2017 19h05

 

Das 54 crianças que participam da roda de capoeira na apresentação de fim de ano da escola do Nícolas, 10 anos, apenas três são negras. Escola particular, bem conceituada, perto do centro de São Paulo, reúne a molecada do terceiro, quarto e quinto anos para a atividade que dura cerca de uma hora – uma catarse embalada por berimbau, atabaque, chocalho, pandeiro, recorreco e agogô. Coisa linda de assistir. Depois de um tempo, você já está gingando o corpo, mesmo sentado na arquibancada da quadra. Os eventos de encerramento das atividades escolares são sempre muito tocantes. Hora em que paramos tudo o que estamos fazendo na loucura de dezembro para ficar ali, diante da performance do filho e dos amigos dele, chorando de emoção pelo que se vê e pelo retrospecto do ano que passa na mente. Nada, nem ninguém, consegue tirar de uma criança a bagagem e a vivência de mais um ano na escola.

Entre rabos de arraia e rodopios, sonho com o dia que uma roda de capoeira de uma escola particular como essa vá contar com mais crianças negras, metade da turma, por exemplo. Vibro por políticas efetivas de inclusão e, mais do que isso, imagino o dia que os negros não precisem de política alguma de inclusão e já tenham, desde o primeiro dia de vida, as mesmas chances e o mesmo reconhecimento que os descendentes de europeus têm.

Enquanto o bullying acontece…

Desenvolvida pelos negros bantos de Angola como forma de resistência, a capoeira virou Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade em 2011 e é herança do povo que desembarcou no Brasil colonial, destino que recebeu o maior fluxo de escravos da história: três milhões de negros tratados como animais (ou pior que isso) durante 300 anos. Aldeias inteiras eram trocadas por tabaco e cachaça na África e negociadas aqui por açúcar – quem sobrevivia ao inferno da viagem de navio no Atlântico não durava mais de sete anos aos castigos sem-fim nas lavouras brasileiras, determinantes para a construção de impérios e fortunas de famílias brancas. Quem tentava fugir da humilhação diária e era capturado recebia uma marca no rosto feita por ferro em brasa; na segunda tentativa, tinha a orelha cortada; na terceira, era açoitado por chicote até a morte.

Enquanto sonho com dias mais justos para os descendentes de africanos que colocaram esse país em pé, percebo que alunos da classe do Nico (e outros também) começam a fazer bullying com uma criança portadora de limitações neurológicas, que reagiu de forma eufórica durante a vez dela de se apresentar. Engulo seco e quase não acredito estar vendo tal cena. Olho atentamente o meu filho para ver se ele vai entrar na onda dos colegas – coisa que não acontece. Não posso dizer que "respiro aliviado", pois sigo extremamente incomodado com a continuação do bullying e a apatia de outros pais que testemunham a cena de camarote.

Só o amor salva?

A atitude das crianças só é interrompida quando uma funcionária da escola saca o que está acontecendo e repreende de forma dura os alunos que desrespeitaram o colega. No dia seguinte, fiz questão de ir à escola, chamar essa funcionária para parabenizar seu movimento. Ainda hoje, uma semana depois da roda de capoeira, me pego emocionado com o turbilhão de sensações daquela apresentação. Acredito, de coração, que o caminho para uma sociedade mais justa com todos os povos, bem como o respeito com qualquer tipo de criança, passa necessariamente por uma palavra que serviu de tema para a apresentação de música no último dia de aula do Nico: amor. Soa até utópico escrever isso em dias que o ódio segmenta a nação e pauta as "conversas". Mas não podemos desistir do amor, de jeito nenhum.

 

Sobre o autor

Paulistano de 1973, Décio Galina fez jornalismo na Cásper Líbero no início dos anos 1990 – os computadores chegavam à faculdade na época em que ele suava para passar nos testes do curso de datilografia do Senac. Trabalhou com Caco Barcellos na pesquisa do livro “Rota 66”. Passou alguns meses na “Gazeta Esportiva” antes de ficar cinco anos de fortes emoções na editoria Geral do jornal “Notícias Populares” – foi de repórter policial a editor. Deixou a vida do crime na periferia e começou a editar a revista “Daslu”, na Trip Editora. Ficou na Trip de 2001 a 2017: 16 anos produzindo conteúdo para marcas como Itaú Personnalité, Mitsubishi, Pão de Açúcar, Natura, Gol Linhas Aéreas, entre outros. Já viajou bastante, dentro e fora do país, o suficiente para saber que o Brasil é seu lugar predileto.

Sobre o Blog

Como curtir a vida com dois filhos moleques (2 e 10 anos), viagens dentro e fora do Brasil e os caminhos de Bilhete Único em São Paulo -- já que o autor sabe dirigir revista, mas não dirige carros...

Décio Galina