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Décio Galina

As lembranças e os planos de viajar pela Transiberiana de 10 em 10 anos

Universa

09/10/2017 08h00

Vagão do trem Transiberiano que peguei com o Luiz Maximiano de Moscou a Vladivostok em 2010 (foto Luiz Maximiano)

A primeira vez que viajei pelos trilhos da Transiberiana (a maior estilingada férrea da Terra) foi no ano 2000, ao lado de Henrique Skujis, jornalista e camarada de classe da Cásper Líbero (turma formada em 1994). Padrinho do meu filho mais velho Nícolas, de 10 anos, foi Henrique quem deu a ideia do nome do moleque. Fizemos o ramal mais turístico da Transiberiana: saímos de Moscou e fomos até Pequim, vencendo 7.865 quilômetros (calma… não erga ainda as sobrancelhas em sinal de surpresa com o tamanho da viagem, pois daqui a pouco vai aparecer coisa maior…).

Não conectamos a capital russa e a chinesa em um tiro só. Fragmentamos a brincadeira em quatro trechos. Primeiro, fomos até Yekaterinburg (que vai receber jogos da Copa do Mundo de 2018), logo depois dos Montes Urais, a divisa natural da Europa com a Ásia. Ficamos uns dias por lá e embarcamos de novo para Severobaikalsk, no norte do Baikal, o lago mais profundo do mundo, com 1.637 metros e um quinto da água doce do planeta. Nessa parada, a gente caprichou na locação: normalmente quem vai para o Baikal escolhe a popular Irkutsk, no sul. O lugar no norte é tão fim de mundo que, na época, deveriam aparecer por lá cerca de 100 ocidentais por ano. Difícil até entender as regras básicas da comunidade. Após um jantar, por exemplo (em um restaurante como vários na Rússia em que você come e depois dança na pista), fomos surpreendidos por locais que tentaram nos dar alguns safanões no bosque. Skujis chegou a cair, mas, no chão, conseguiu dar uma solada na fuça de um dos rapazes, e corremos dali berrando. Como ficamos com medo de outra emboscada, trocamos a simples pousada de madeira onde estávamos pela casa de Rashit Yahin, um senhor famoso na área por falar inglês e ter parte do corpo paralisada.

À frente, Rashit, que foi essencial para desbravarmos a região de Severobaikalsk, no norte do lago Baikal, em 2000 (foto Henrique Skujis)

Com Rashit e a turma dele (composta só por figuras geniais), ficamos longe de novas confusões e fizemos vários passeios bacanas na região: de churrascos à beira do Baikal até tours mais distantes, como uma caminhada para o inóspito lago Frolika. Não ouvia falar do Rashit desde aquela época – semana passada ele me adicionou no Facebook (fiquei pensando se foi por causa desse blog no UOL, já que estão aparecendo umas pessoas novas e/ou das antigas nas redes sociais… mas, o Rashit, não esperava).

Cabine de segunda classe, para quatro pessoas, de viagem pela Transiberiana em 2000 (foto Henrique Skujis)

Deixamos o Baikal e saímos da Rússia para outra escalada de uma semana: dessa vez na Mongólia. O último trecho para Pequim conta com uma parada bem curiosa na fronteira mongol com a chinesa: como nenhum dos dois lados quis assumir a largura da bitola do vizinho, vagão por vagão é suspenso por macaco hidráulico em um galpão para trocarem as rodas russas pelas chinesas! (caso você tenha ido para esses lados recentemente, e tiver novidades desse bizarro pit stop de trem, me avise, por favor). Lembro que a primeira reportagem que escrevemos na volta da viagem foi para a Revista da Folha – depois, emplacamos matéria em outras sete publicações (a agência que nos patrocinou ficou tão satisfeita com a repercussão que, nos anos seguintes, fomos convidados a flanar por outras ex-repúblicas da União Soviética, como Lituânia, Letônia, Estônia, Uzbesquistão e Kazaquistão).

Hora de comprar algo para comer em uma das paradas da Transiberiana, em 2000. Skujis está de blusa quadriculada, no centro (foto Décio Galina)

 

A segunda vez que viajei pelos trilhos da Transiberiana foi em 2010, ao lado do fotógrafo Luiz Maximiano. Dessa vez, faria o ramal mais clássico da ferrovia, apenas por solo russo, cruzando oito fusos horários, de Moscou a Vladivostok, no extremo leste do país, em uma travessia de (agora sim prepare as sobrancelhas…) 9.289 quilômetros. Com um detalhe (não relaxe as sobrancelhas ainda): sem escalas, quer dizer, sete dias enfurnado no trem, vendo a Sibéria passar como um filme nas janelas do Rossiya, tomando doses consideráveis de vodca com dois russos que dividimos a cabine de segunda classe e que não falavam uma vírgula de inglês. Além de beber vodca, eles nos ensinaram que ela pode ser usada como remédio para diversos fins. Está com dor de cabeça? Passa um pouquinho na testa. As costas não aguentam mais a viagem? Quem sabe outro tanto na coluna ajude a relaxar. No percurso, 66 paradas – só metade delas com mais de 10 minutos (a maior pausa no trajeto é em Barabinsk: 42 minutos).

A maior travessia terrestre disponível nesse planeta foi só o primeiro capítulo de um projeto que inventei para a Audi Magazine, revista que dirigi a redação por oito anos (mesmo sem ter carta de motorista), e saí em julho desse ano. Batizei o roteiro de "Moscou a Tóquio, por terra e mar". O segundo capítulo do périplo foi o navio que parte de Vladivostok e vai até a costa oeste japonesa após duas noites no Mar do Japão. De lá, mais alguns trens até Tóquio e a matéria estava pronta (dividida em duas edições). Paulo Kakinoff, presidente da Audi do Brasil na época (hoje presidente da Gol Linhas Aéreas) gostou tanto da história que bancou a capa da revista com o primeiro capítulo da reportagem: uma foto do tabuleiro do War (afinal, todo mundo já ouviu falar de Vladivostok graças ao jogo), com a chamada de capa escrita na "carta de objetivo" que os jogadores sorteavam no início da partida.

Os dois russos com quem eu e Luiz Maximiano dividimos a cabine em viagem para Vladivostok em 2010 para Audi Magazine

Tudo isso para dizer que vejo uma certa graça em repetir a viagem pela Transiberiana (seja lá o ramal que for) de dez em dez anos. Logo, a terceira viagem acontece em 2020, quando o Nícolas estará com 13 anos. Dá para ir junto numa boa. O Felipe, que semana passada completou 3 anos, estará muito novo ainda para curtir como se deve. Mas, meu caçula querido, você pode guardar essa coluna na gaveta e reivindicar seus direitos na quarta jornada Rússia afora de trem, que deve rolar em 2030. Aí, você estará com 16, o Nico com 23 e eu com 57. Olha, vai ser uma bagunça daquelas, viu…

Sobre o autor

Paulistano de 1973, Décio Galina fez jornalismo na Cásper Líbero no início dos anos 1990 – os computadores chegavam à faculdade na época em que ele suava para passar nos testes do curso de datilografia do Senac. Trabalhou com Caco Barcellos na pesquisa do livro “Rota 66”. Passou alguns meses na “Gazeta Esportiva” antes de ficar cinco anos de fortes emoções na editoria Geral do jornal “Notícias Populares” – foi de repórter policial a editor. Deixou a vida do crime na periferia e começou a editar a revista “Daslu”, na Trip Editora. Ficou na Trip de 2001 a 2017: 16 anos produzindo conteúdo para marcas como Itaú Personnalité, Mitsubishi, Pão de Açúcar, Natura, Gol Linhas Aéreas, entre outros. Já viajou bastante, dentro e fora do país, o suficiente para saber que o Brasil é seu lugar predileto.

Sobre o Blog

Como curtir a vida com dois filhos moleques (2 e 10 anos), viagens dentro e fora do Brasil e os caminhos de Bilhete Único em São Paulo -- já que o autor sabe dirigir revista, mas não dirige carros...

Décio Galina