A semana em que meu caçula parou de falar e passou fome
Felipe, o caçula de 3 anos, abriu 2018 com duas limitações que estão o deixando maluco: não consegue falar, nem comer. Tamanha a dor causada por cerca de um milhão de aftas que brilham no céu da boca do moleque como estrelas no Deserto de Atacama. Prazer, estomatite – nem sabia do que se tratava (Nícolas, meu menino de 10 anos, nunca teve), e não pensei que o calvário se arrastasse por tantos dias.
De bico fechado, com dificuldade até para abrir a boca, ele lança um olhar de interrogação e de indignação, sem entender por que, de repente, teve que abrir mão das coisas que mais gosta na vida. Normalmente, Felipe fala como uma matraca desde o instante que abre o olho na cama e grita: "Tá dia! Vamos pra sala!" (mesmo que seja 6 e pouco da manhã).
Entre os motivos que o fazem parar um pouco de falar estão a fome e a disposição de comer pratadas de arroz, feijão, purê, bife e brócolis. Tem noite que janta três vezes. De sobremesa, arremata um mamão (meio ou inteiro). Duas bananas também não é raro de acontecer. Queima o que come jogando bola, brincando sem parar, inventando que é pirata em embates de espada com o pai que podem durar horas.
Mudo, inerte e com um galo
Gosta também de contato físico, cócegas na barriga, luta rolando pelo chão. Estamos inclusive pensando em colocá-lo em algum esporte tipo caratê, kung-fu ou luta greco-romana (Carol, minha mulher e mãe do menino, já descartou o judô porque ela acha que quimono abre toda hora e fica desarrumado).
A imagem dele mudo, inerte e com fome ainda tem o agravante de um galo na testa que mais parece uma bola de tênis amarela, resultado de um pouso mal calculado, pulando nos bancos da Choperia (me recuso a chamar esse lugar de Comedoria…) do Sesc Pompeia. Nesses dias difíceis, Felipe segurou a onda, chorou só nos ápices de dor quando não conseguiu comer nem sorvete e se virou na base do olhar, e do "hum-hum…".
Ontem, dia em que completei 45 anos, tudo o que queria é que ele voltasse a conseguir comer alguma coisa. Assoprei velinhas em um bolo de chocolate recheado e ele não resistiu. "Vai doer o bolo, papai?". "Não sei, filho, experimenta…" (quase um mantra pra vida toda). As mastigadas em câmera lenta trouxeram angústia à sala. "Consegui! Não doeu!", e jogou os braços para cima como Dora faz nos desenhos (que ele adora assistir) ao cantar "Conseguimos!". À tarde, mais uma rodada de coração acelerado: ele pediu para tentar comer arroz. O caminho da colher para a boca foi acompanhado com a tensão de uma torcida que assiste ao jogador indo bater pênalti.
Ao engolir e arregalar os olhos, como se dissesse "estou prestes a retomar a vida normal, me aguardem…", respirei aliviado e mal comemorei o gol. Só assim mudei a chavinha e saí para jantar com a mãe do menino, que também estava leve, voando sobre sapatos altos, vermelhos. É ótima a expectativa para os próximos 45 anos. Entro em campo mais do que aquecido para esse segundo tempo que promete ser empolgante.
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